quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Chapeuzinho Vermelho

Millor Fernandes


Era uma vez (admitindo-se aqui o tempo como uma realidade palpável, estranho, portanto, à fantasia da história) uma menina, linda e um pouco tola, que se chamava Chapeuzinho Vermelho. (Esses nomes que se usam em substituição do nome próprio chamam-se alcunha ou vulgo). Chapeuzinho Vermelho costumava passear no bosque, colhendo Sinantias, monstruosidade botânica que consiste na soldadura anômala de duas flores vizinhas pelos invólucros ou pelos pecíolos, Mucambés ou Muçambas, planta medicinal da família das Caparidáceas, e brincando aqui e ali com uma Jurueba, da família dos Psitacídeos, que vivem em regiões justafluviais, ou seja, à margem dos rios. Chapeuzinho Vermelho andava, pois, na Floresta, quando lhe aparece um lobo, animal selvagem carnívoro do gênero cão e... (Um parêntesis para os nossos pequenos leitores — o lobo era, presumivelmente, uma figura inexistente criada pelo cérebro superexcitado de Chapeuzinho Vermelho. Tendo que andar na floresta sozinha, - natural seria que, volta e meia, sentindo-se indefesa, tivesse alucinações semelhantes.).


Chapeuzinho Vermelho foi detida pelo lobo que lhe disse: (Outro parêntesis; os animais jamais falaram. Fica explicado aqui que isso é um recurso de fantasia do autor e que o Lobo encarna os sentimentos cruéis do Homem. Esse princípio animista é ascentralíssimo e está em todo o folclore universal.) Disse o Lobo: "Onde vais, linda menina?" Respondeu Chapeuzinho Vermelho: "Vou levar estes doces à minha avozinha que está doente. Atravessarei dunas, montes, cabos, istmos e outros acidentes geográficos e deverei chegar lá às treze e trinta e cinco, ou seja, a uma hora e trinta e cinco minutos da tarde".


Ouvindo isso o Lobo saiu correndo, estimulado por desejos reprimidos (Freud: "Psychopathology Of Everiday Life", The Modern Library Inc. N.Y.). Chegando na casa da avozinha ele engoliu-a de uma vez — o que, segundo o conceito materialista de Marx indica uma intenção crítica do autor, estando oculta aí a idéia do capitalismo devorando o proletariado — e ficou esperando, deitado na cama, fantasiado com a roupa da avó.


Passaram-se quinze minutos (diagrama explicando o funcionamento do relógio e seu processo evolutivo através da História). Chapeuzinho Vermelho chegou e não percebeu que o lobo não era sua avó, porque sofria de astigmatismo convergente, que é uma perturbação visual oriunda da curvatura da córnea. Nem percebeu que a voz não era a da avó, porque sofria de Otite, inflamação do ouvido, nem reconheceu nas suas palavras, palavras cheias de má-fé masculina, porque afinal, eis o que ela era mesmo: esquizofrênica, débil mental e paranóica pequenas doenças que dão no cérebro, parte-súpero-anterior do encéfalo. (A tentativa muito comum da mulher ignorar a transformação do Homem é profusamente estudada por Kinsey em "Sexual Behavior in the Human Female". W. B. Saunders Company, Publishers.) Mas, para salvação de Chapeuzinho Vermelho, apareceram os lenhadores, mataram cuidadosamente o Lobo, depois de verificar a localização da avó através da Roentgenfotografia. E Chapeuzinho Vermelho viveu tranqüila 57 anos, que é a média da vida humana segundo Maltus, Thomas Robert, economista inglês nascido em 1766, em Rookew, pequena propriedade de seu pai, que foi grande amigo de Rousseau.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A estante



Ferreira Gullar


Naquele novo apartamento da rua Visconde de Pirajá pela primeira vez teria
um escritório para trabalhar. Não era um cômodo muito grande mas dava para armar ali a minha tenda de reflexões e leitura: uma escrivaninha, um sofá e os livros. Na parede da esquerda ficaria a grande e sonhada estante que caberia todos os meus livros. Tratei de encomendá-la a seu Joaquim, um marceneiro que tinha oficina na rua Garcia D'Avila com Barão da Torre.

O apartamento não ficava tão perto da oficina. Era quase em frente ao prédio onde morava Mário Pedrosa, entre a Farme de Amoedo e a antiga Montenegro, hoje Vinicius de Moraes. Estava ali há uma semana e nem decorara ainda o número do prédio. Tanto que, quando seu Joaquim, ao preencher a nota da encomenda, perguntou-me onde seria entregue a estante, tive um momento de hesitação. Mas foi só um momento. Pensei rápido: "Se o prédio do Mário é 228, o meu, que fica quase em frente, deve ser 227. "Mas lembrei-me de que, ao ir ali pela primeira vez, observara que, apesar de ficar em frente ao do Mário, havia uma diferença na numeração.

— Visconde de Pirajá 127 — respondi, e seu Joaquim desenhou o endereço na nota.

— Tudo bem, seu Ferreira. Dentro de um mês estará lá sua estante.

— Um mês, seu Joaquim! Tudo isso? Veja se reduz esse prazo.

— A estante é grande, dá muito trabalho... Digamos, três semanas.

Contei as semanas. Não via chegar o momento de ter no escritório a estante sonhada, onde enfim poderia arrumar os livros por assunto e autores. E,mais que isso, sentir-me um escritor de verdade, um profissional, cercado de livros por todos os lados. No dia da entrega, voltei do trabalho apressado para ver minha estante.

— Como é, veio? — perguntei ao entrar.

— Veio o quê?

— Como o quê? A estante!

Não viera. Seu Joaquim não cumprira com a palavra empenhada, ah português filho de... Telefonei para ele sem dissimular, no tom da voz, minha irritação. E ele:

— Como não cumpri? Andei com dois homens de cima para baixo da rua e não encontrei o tal número que o senhor me indicou. Não existe na rua Visconde de Pirajá o número 127, senhor Ferreira.

Fiquei sem ação. Dera a ele o número errado.

— Diga-me o número certo e sua estante estará em sua casa amanhã mesmo.

Fiquei sem palavra. Se não era 127, qual número seria? Não era 227, disso
tinha certeza... E o Joaquim ao telefone:

— Qual o número, seu Ferreira?

— É 217, seu Joaquim... É isso, 217.

— Muito bem, 217. Já anotei. Amanhã terá sua estante.

Não tive. Ao chegar em casa e verificar que a estante não estava lá, conclui que havia dado de novo o número errado ao marceneiro. E corri para o telefone a fim de me desculpar.

— Seu Joaquim, é o senhor Ferreira... da estante.

— O senhor está querendo brincar comigo?

Fui tomado por um frouxo de riso, enquanto seu Joaquim, indignado, dizia que não ia mais entregar estante nenhuma, que eu fosse buscá-la, pois já era a segunda vez que subira e descera a Visconde de Pirajá, carregando aquela estante enorme, etc. etc...

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A partida



Por Osman Lins

Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.

Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.
Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!

Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.

Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.

Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.

Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:

— Acordado?

Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.
Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.

Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.

Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.

Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.

Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.

Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras... Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?

Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.

Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?

Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Despedidas de um homem casado

Por Paulo Rebelo

Não parece, mas toda mudança me parte o coração. Seja de bairro, cidade ou país. Seja em lugares onde morei cinco anos, cinco meses ou até mesmo cinco semanas, como já aconteceu certa vez.

Do dia em que cortaram meu umbigo gordo até hoje, são 14 mudanças de CEP. Com exceção de uma, na qual ainda era muito guri, lembro de todas as outras 13 como se fosse hoje.

Por mais desregrados que tentemos ser, sempre sobra saudade por abandonar as poucas raízes que a gente deixa pelo caminho. E me pergunto se vamos voltar a nos encontrar um dia, nem que seja para um café com bolo de bacia na padaria.

É o garçom no bar da esquina que já se considera um amigo e fala dos problemas domésticos, pede conselhos e sempre lhe consegue um pedaço extra de bife sem cobrar nada.

É o porteiro que está sempre dormindo quando você chega bêbado e fica no meio da rua, esperando ele acordar e abrir o portão, como se nada tivesse acontecido.

É o zelador evangélico que lhe acha um devasso. A secretária que abre um sorriso largo quando lhe vê, por causa do bombom de cupuaçu. A atendente da livraria onde você sempre vai e nunca compra nada, mas troca um alô de vez em quando e compra uma caneta Bic porque elas sempre se perdem.

São as pessoas que, anos depois, ainda se espantam quando você toma café ou suco de limão sem açúcar. Os colegas de trabalho que sempre conseguem lhe arrancar risadas na hora do almoço e nunca se acostumam com seu jeito limão sem açúcar de ser.

O taxista que pergunta "para onde vamos" e você pode simplesmente dizer "para casa". Não por piada, mas porque às vezes a gente realmente não sabe onde está ou para onde ir.

É a cobradora do ônibus que descobriu como você ganha seu pão e sempre pergunta quando você vai entrevistar o pagodeiro Belo e trazer um autógrafo dele. Mas se for do Alexandre Pires (ele ainda vive?) também serve.

É o cabeludo da banca de revistas que deixa você ler quase tudo em troca de umas cigarrilhas holandesas. A faxineira que não entende como você sobrevive em meio aquela bagunça toda e com a geladeira quase sempre vazia.

São as moças bonitas (ou não) que você conhece e, mesmo sabendo que não estaremos ali durante muito tempo, conseguem superar a eterna expectativa do compromisso sério e da casa própria, talvez porque enxerguem alguma coisa em você que provavelmente nenhum dos dois saiba ao certo o que é.

Talvez na esperança que a mudança de hoje seja a última.

Mas ainda há tantas cidades para conhecer, tanta gente com tanta coisa para lhe ensinar. E todas essas pessoas estão em todos esses lugares, tudo sempre igual e tudo sempre diferente ao mesmo tempo.

As histórias podem ser todas iguais, mas são contadas de diferentes maneiras. Difícil saber se, a cada mudança, vamos aprender menos ou mais com elas.

Algumas raízes seguem firmes e fortes, outras se quebram completamente, seja pela morte da esperança de que fosse a última mudança, seja pelo esquecimento de um reles passatempo.

E é sempre uma tristeza, quase um divórcio, quando você contabiliza quantas dessas pessoas vão parar de lhe ver e nunca vão saber o que aconteceu.

Elas vão continuar lhe esperando no bar, no restaurante, na livraria, no interfone da portaria.

E você não vai chegar.

Vai parar de tomar aquele café, de comer aquele bife, de abraçar o porteiro da sua terra quando o Sport Recife ganha uma partida, de brincar com as religiões alheias, de tentar mostrar às jovens donzelas que talvez exista um vasto mundo novo lá fora, que vai muito além de um emprego fixo, um carro na garagem e um homem para chamar de seu.

Mas a gente nunca tem tempo de conferir de verdade se conseguimos ensinar algo também.

E quando você chega em um novo bairro, vizinhança ou cidade, começa tudo de novo.

Quase como um casamento. Você vai descobrindo, aos poucos, aqueles detalhes mais escondidos, aquelas curvas mais sinuosas. Vai criando intimidade com as pessoas que lhe cercam, vai entendendo o modo de pensar delas, as necessidades, frustrações, esperanças.

E enquanto todos se entendem, o casamento dura um bocado. No dia de ir embora e cada um seguir o seu caminho, nem sempre as pessoas vão lembrar de todos os momentos bons que passamos juntos, de tudo que aprendemos um com o outro.

Às vezes fica aquela lembrança boa, aquela saudade gostosa. Às vezes algumas mágoas, quiçá muitas raivas. Mas não haverá despedida, geralmente nunca há. Estamos aqui um dia, no outro deixamos um bilhete. Ou um e-mail.

Daqui a pouco tempo aparece outro viajante, outro eremita, outro limão sem açúcar, outro ranzinza na vida de todas essas pessoas que a gente deixou para trás.

E começa tudo outra vez. Até a hora de ir ali comprar cigarro de novo.

* texto retirado do Terra Magazine: http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4402147-EI14598,00-Despedidas+de+um+homem+casado.html

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Suicídio na granja

* Lygia Fagundes Teles

Alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos gestos — avisos que podem ser mascarados pedidos de socorro. Mas há outros que se vão no mais absoluto silêncio. Ele não deixou nem ao menos um bilhete?, fica perguntando a família, a amante, o amigo, o vizinho e principalmente o cachorro que interroga com um olhar ainda mais interrogativo do que o olhar humano, E ele?!

Suicídio por justa causa e sem causa alguma e aí estaria o que podemos chamar de vocação, a simples vontade de atender ao chamado que vem lá das profundezas e se instala e prevalece. Pois não existe a vocação para o piano, para o futebol, para o teatro. Ai!... para a política. Com a mesma força (evitei a palavra paixão) a vocação para a morte. Quando justificada pode virar uma conformação, Tinha os seus motivos! diz o próximo bem informado. Mas e aquele suicídio que (aparentemente) não tem nenhuma explicação? A morte obscura, que segue veredas indevassáveis na sua breve ou longa trajetória.

Pela primeira vez ouvi a palavra suicídio quando ainda morava naquela antiga chácara que tinha um pequeno pomar e um jardim só de roseiras. Ficava perto de um vilarejo cortado por um rio de águas pardacentas, o nome do vilarejo vai ficar no fundo desse rio. Onde também ficou o Coronel Mota, um fazendeiro velho (todos me pareciam velhos) que andava sempre de terno branco, engomado. Botinas pretas, chapéu de abas largas e aquela bengala grossa com a qual matava cobras. Fui correndo dar a notícia ao meu pai, O Coronel encheu o bolso com pedras e se pinchou com roupa e tudo no rio! Meu pai fez parar a cadeira de balanço, acendeu um charuto e ficou me olhando. Quem disse isso? Tomei o fôlego: Me contaram no recreio. Diz que ele desceu do cavalo, amarrou o cavalo na porteira e foi entrando no rio e enchendo o bolso com pedra, tinha lá um pescador que sabia nadar, nadou e não viu mais nem sinal dele.

Meu pai baixou a cabeça e soltou a baforada de fumaça no ladrilho: Que loucura. No ano passado ele já tinha tentado com uma espingarda que falhou, que loucura! Era um cristão e um cristão não se suicida, ele não podia fazer isso, acrescentou com impaciência. Entregou-me o anel vermelho-dourado do charuto. Não podia fazer isso!

Enfiei o anel no dedo, mas era tão largo que precisei fechar a mão para retê-lo. Mimoso veio correndo assustado. Tinha uma coisa escura na boca e espirrava, o focinho sujo de terra. Vai saindo, vai saindo!, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho, a conversa agora era séria. Mas pai, por que ele se matou, por quê?! fiquei perguntando. Meu pai olhou o charuto que tirou da boca. Soprou de leve a brasa: Muitos se matam por amor mesmo. Mas tem outros motivos, tantos motivos, uma doença sem remédio. Ou uma dívida. Ou uma tristeza sem fim, às vezes começa a tristeza lá dentro e a dor na gaiola do peito é maior ainda do que a dor na carne. Se a pessoa é delicada, não agüenta e acaba indo embora! Vai embora, ele repetiu e levantou-se de repente, a cara fechada, era o sinal: quando mudava de posição a gente já sabia que ele queria mudar de assunto. Deu uma larga passada na varanda e apoiou-se na grade de ferro como se quisesse examinar melhor a borboleta voejando em redor de uma rosa. Voltou-se rápido, olhando para os lados. E abriu os braços, o charuto preso entre os dedos: Se matam até sem motivo nenhum, um mistério, nenhum motivo! repetiu e foi saindo da varanda. Entrou na sala. Corri atrás. Quem se mata vai pro inferno, pai? Ele apagou o charuto no cinzeiro e voltou-se para me dar o pirulito que eu tinha esquecido em cima da mesa. O gesto me animou, avancei mais confiante: E bicho, bicho também se mata? Tirando o lenço do bolso ele limpou devagar as pontas dos dedos: Bicho, não, só gente.

Só gente? — eu perguntei a mim mesma muitos e muitos anos depois, quando passava as férias de dezembro numa fazenda. Atrás da casa-grande tinha uma granja e nessa granja encontrei dois amigos inseparáveis, um galo branco e um ganso também branco mas com suaves pinceladas cinzentas nas asas. Uma estranha amizade, pensei ao vê-los por ali, sempre juntos. Uma estranhíssima amizade. Mas não é a minha intenção abordar agora problemas de psicologia animal, queria contar apenas o que vi. E o que vi foi isso, dois amigos tão próximos, tão apaixonados, ah! como conversavam em seus longos passeios, como se entendiam na secreta linguagem de perguntas e respostas, o diálogo. Com os intervalos de reflexão. E alguma polêmica mas com humor, não surpreendi naquela tarde o galo rindo? Pois é, o galo. Esse perguntava com maior freqüência, a interrogação acesa nos rápidos movimentos que fazia com a cabeça para baixo, e para os lados, E então? O ganso respondia com certa cautela, parecia mais calmo, mais contido quando abaixava o bico meditativo, quase repetindo os movimentos da cabeça do outro mas numa aura de maior serenidade. Juntos, defendiam-se contra os ataques, não é preciso lembrar que na granja travavam-se as mesmas pequenas guerrilhas da cidade logo adiante, a competição. A intriga. A vaidade e a luta pelo poder, que luta! Essa ânsia voraz que atiçava os grupos, acesa a vontade de ocupar um espaço maior, de excluir o concorrente, época de eleições? E os dois amigos sempre juntos. Atentos. Eu os observava enquanto trocavam pequenos gestos (gestos?) de generosidade nos seus infindáveis passeios pelo terreiro, Hum! olha aqui esta minhoca, sirva-se à vontade, vamos, é sua! — dizia o galo a recuar assim de banda, a crista encrespada quase sangrando no auge da emoção. E o ganso mais tranqüilo (um fidalgo) afastando-se todo cerimonioso, pisando nas titicas como se pisasse em flores, Sirva-se você primeiro, agora é a sua vez! E se punham tão hesitantes que algum frango insolente, arvorado a juiz, acabava se metendo no meio e numa corrida desenfreada levava no bico o manjar. Mas nem o ganso com seus olhinhos redondamente superiores nem o galo flamante — nenhum dos dois parecia dar maior atenção ao furto. Alheios aos bens terreirais, desligados das mesquinharias de uma concorrência desleal, prosseguiam o passeio no mesmo ritmo, nem vagaroso nem apressado, mas digno, ora, minhocas!

Grandes amigos, hem?, comentei certa manhã com o granjeiro que concordou tirando o chapéu e rindo, Eles comem aqui na minha mão!

Foi quando achei que ambos mereciam um nome assim de acordo com suas nobres figuras, e ao ganso, com aquele andar de pensador, as brancas mãos de penas cruzadas nas costas, dei o nome de Platão. Ao galo, mais questionador e mais exaltado como todo discípulo, eu dei o nome de Aristóteles.

Até que um dia (também entre os bichos, um dia) houve o grande jantar na fazenda e do qual não participei. Ainda bem. Quando voltei vi apenas o galo Aristóteles a vagar sozinho e completamente desarvorado, os olhinhos suplicantes na interrogação, o bico entreaberto na ansiedade da busca, Onde, onde?!... Aproximei-me e ele me reconheceu. Cravou em mim um olhar desesperado, Mas onde ele está?! Fiz apenas um aceno ou cheguei a dizer-lhe que esperasse um pouco enquanto ia perguntar ao granjeiro: Mas e aquele ganso, o amigo do galo?!

Para que prosseguir, de que valem os detalhes? Chegou um cozinheiro lá de fora, veio ajudar na festa, começou a contar o granjeiro gaguejando de emoção. Eu tinha saído, fui aqui na casa da minha irmã, não demorei muito mas esse tal de cozinheiro ficou apavorado com medo de atrasar o jantar e nem me esperou, escolheu o que quis e na escolha, acabou levando o coitado, cruzes!... Agora esse daí ficou sozinho e procurando o outro feito tonto, só falta falar esse galo, não come nem bebe, só fica andando nessa agonia! Mesmo quando canta de manhãzinha me representa que está rouco de tanto chorar.

Foi o banquete de Platão, pensei meio nauseada com o miserável trocadilho. Deixei de ir à granja, era insuportável ver aquele galo definhando na busca obstinada, a crista murcha, o olhar esvaziado. E o bico, aquele bico tão tagarela agora pálido, cerrado. Mais alguns dias e foi encontrado morto ao lado do tanque onde o companheiro costumava se banhar. No livro do poeta Maiakóvski (matou-se com um tiro) há um verso que serve de epitáfio para o galo branco: Comigo viu-se doida a anatomia / sou todo um coração!


Texto extraído do livro “Invenção e Memória”, Editora Rocco Ltda. – Rio de Janeiro, 2000, pág. 17.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

PROPAGANDA DO AMOR OU AMOR DE PROPAGANDA

Retirado de: http://carpinejar.blogspot.com/

Há casais contra qualquer ostentação. Não realizam propaganda do seu amor. Não narram vantagens, não se elogiam em público, não descrevem o que ele ou ela preparou de especial na noite anterior, não geram ciúme, muito menos inveja entre os amigos. Não se derramam em abraços de aeroporto em cada esquina.

São os casais ideais, certo? Talvez durem para sempre, o que não traduz perfeição.

Não há como ser feliz sem merchandising do que se está vivendo. Sem morder a língua. Sem fofoca. Sem contar um pouco mais. É pensar e divulgar.

O amor é público, desde quando se estendeu a mão pela primeira vez com muito nervosismo para andar na rua com ela.

Não existe como disfarçar. Sensibilidade controlada é indiferença.

Um dos graves traumas afetivos é a falta de amor pelo amor.

Os pares se amam, mas estão descontentes por amar. Não desejavam estar amando. É um amor contrariado, um amor dissidente. Como uma maldição: Por que foi acontecer comigo logo agora?

É como se a companhia não fosse apropriada. Ou que não devia ter surgido naquele momento, é bem capaz de atrapalhar os negócios ou a vontade de viajar e de ser livre. Ou porque é diferente e não responde automaticamente. Perderemos tempo, perderemos a agilidade que tanto nos caracterizava.

Não se enxergam abençoados, e sim traídos pelo destino. Não tratam de alardear seu relacionamento como um feriado de sol. Por receio ou insegurança, não se orgulham da companhia. Nunca falarão: estou com quem sonhei, é perfeito para mim.

Não identificam que já têm o mais complicado, que o restante é simples: um cartão, um torpedo, uma cartinha, uma lembrança, um prato predileto, um capricho, um colo.

Amam ao mesmo tempo em que odeiam. Amam ser, odeiam estar. Por aquilo que a convivência exige, pelo mal-estar de uma conversa truncada, pelo ciúme passivo e sempre existente, pela necessidade de telefonar e de se apaziguar, pela dependência ruidosa e ávida.

Quem ama alguém, mas odeia o amor não terá paciência. Entrará num clima de cobrança permanente, de suspeita irremediável. Conhece como o par fica irritado e trata de testar os limites. Não agrada para criar contrariedade e arrecadar sinais do fim. Quer se livrar do amor, não do outro, mas o amor está no outro que acaba pagando a conta.

Não consegue se separar, tampouco se entrega verdadeiramente.

Quando está em paz, enlouquece. Quando está estressado, age com distração e depois reclama da cobrança. Ou cobra a cobrança. Ou antecipa a cobrança que não viria. A briga está condicionada a uma postura catastrófica. Mobilizado a provar que não tem mais jeito. Em vez de elogiar, reclama. Em vez de se declarar, ironiza. Em vez de confiar, pragueja.

A mulher pode amá-lo, o homem pode amá-la, só que ambos não amam o próprio sentimento. Cada um não se ama por amar. Não basta amá-la, tem que se amar por amá-la. Não basta amá-lo, tem que se amar por amá-lo.

Mas a reflexão não termina por aqui. Caso contraiu piedade do que não ama o amor, há ainda um tipo mais terrível: aquele que ama o amor, mas não ama seu parceiro. Ama seu modo de amar e não aceita mais nada. Faz o amor de propaganda, que é o contrário de fazer propaganda do amor. Experimenta um delírio romântico. Tudo o que o outro oferece não é do jeito conhecido, portanto não serve. Alimenta uma insatisfação constante, autoritária, como um diretor que recusa o improviso de seus atores e manda repetir a cena. Não reconhece os gestos mais naturais e singelos. Sufoca o que vive de fato pela pressa de um cartão-postal. Funciona na base do escândalo: da serenata na janela, da Kombi do aniversário, dos presentes imensos e das provas vistosas. Será insaciável, pressionando para receber o que somente ele imaginou (e nunca confessou).

É um desalmado da privacidade, um amante genérico, porque ama demais a si para amar quem quer que seja.

domingo, 28 de março de 2010

Pensamentos que reúnem um tema


Adalgisa Nery

Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranqüilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.
Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.
Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.
Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença,
Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.
Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.